Ensino de História 3 - Memórias da escravidão: desenvolvendo a oralidade em sala de aula


          

         
          Apesar da aparente simplicidade do exercício, tentei aliar na mesma proposta o esforço em compreender textos com a capacidade em debatê-los para além do conteúdo escrito, forçando a imaginação dos alunos e, de certa forma, contribuindo para que o corpo discente tivesse uma leitura mais ampliada da situação em tela. Com base em trechos do livro organizado pelas historiadoras Hebe Mattos e Ana Lugão Rios, “Memórias do Cativeiro”, procurei resgatar distintas recordações de três descendentes de escravos no Brasil, problematizando tanto a instituição da escravidão quanto o estofo sentimental desses personagens em relação à experiência dos seus antepassados. [1] O trabalho foi realizado em uma turma de primeiro ano do Ensino Médio, na modalidade curricular de formação de professores (Curso Normal).
            Os alunos tinham em vista duas tarefas distintas. Assim que recebessem uma folha com os três depoimentos de descendentes de escravos, deveriam responder às questões propostas pelo professor. As três perguntas – uma para cada texto – elucidariam o conteúdo de cada depoimento. O objetivo já era o de pavimentar um caminho para que a turma soubesse claramente o que tratava cada um dos trechos. Durante essa parte, o professor auxiliou individualmente cada aluno em relação às dúvidas que surgiam na interpretação do texto. A partir desse esforço, alguns alunos logo captaram a essência da proposta, aventurando-se rapidamente pelas sendas da própria imaginação, traçando hipóteses que deram um colorido especial à atividade.
            Uma vez respondidas as perguntas abaixo de cada depoimento, os alunos passaram ao trabalho mais complexo. Deveriam se imaginar como se fossem – eles mesmos – descendentes de escravos que escutaram relatos sobre a escravidão dos pais, avós ou tios. A partir daí, os alunos deveriam escrever um pequeno relato que traçasse algum tipo de recordação em torno da instituição da escravidão. Um dos meios mais eficazes para o desenvolvimento da imaginação é o de tentar engajar o discente em meio a um cenário hipotético em que se experimentou uma vivência concreta. Em certa medida, os três depoimentos listados serviram como uma espécie de parâmetro para que cada aluno tivesse alguma referência na hora de escrever as suas próprias memórias enquanto hipotéticos descendentes de escravos que passaram anos em escutar relatos.
            Na aula seguinte, o professor intermediou um debate amplo sobre a instituição da escravidão a partir dos depoimentos. Os alunos puderam explicitar livremente tanto o que entenderam dos textos quanto possíveis hipóteses em torno do destino das pessoas reais apresentadas nos depoimentos. Mediado pelo professor, o debate oral conseguiu ampliar as percepções sobre o instituto histórico da escravidão, situando os alunos no campo da esfera moral tendo em vista problemas como a justiça, o senso de propriedade que um ser humano tinha em relação a outro e também ao delicado tema da esperança e receio quanto ao incerto futuro pós-abolição.
            Transcrevo a seguir o trabalho sugerido.


a)      Ao ler os trechos dos depoimentos abaixo, procure responder às respectivas questões apresentadas.

b)      Leia os testemunhos de descendentes de negros escravizados a seguir e elabore, de acordo com a sua criatividade, um testemunho próprio. Faça de conta que você está dando uma entrevista para historiadores que visitam uma comunidade quilombola. O que você diria para eles?

Obs. Todos os textos transcritos abaixo foram extraídos do livro: RIOS, Ana Lugão & MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

1)       “Quando chegou o tempo... o dia 13 de maio, o dia da libertação, o senhor bateu o sino e desceu gente deles... mandou um empregado, capataz. Capataz, naquele tempo era capataz. Bateu o sino e o capataz foi lá na roça e os negros subiram todos pra fazenda. Chegaram na fazenda e ficaram todos no terreiro lá esperando e ele saiu lá na janela: ‘De hoje em diante, vocês são senhor de seu nariz, cada um vai fazer pra si, eu não tenho mais conta com vocês não’... a liberdade. Mas ainda teve um bocado de bobo que chorou, chorou porque não sabia como é que ia viver. Só conhecia ali na fazenda, aí pegaram, choraram: ‘Como é que a gente vai fazer sem o senhor ajudar nós?’ Eles não sabiam que eles é que estavam ajudando o senhor. ‘Nós não temos modo de viver.” Aí foi indo e ele falou: ‘Vocês vão trabalhar pra mim mesmo, cada um pega o seu talhão de café’, aí trabalharam aí mesmo... papai, mamãe, vovô...vovó”. (D. Zeferina, RJ, 66 anos, 15/05/1995 p. 114-5)
De que modo os ex-escravos entenderam como seria a vida depois da abolição da escravidão?


2)       “Minha avó veio do Congo Belga que hoje é o Zaire. Ela veio com quinze anos num navio negreiro, e um português com nome Joaquim, no Rio de Janeiro, comprou ela. Ela foi morar com o português e daí nasceu minha mãe, filha do português com a minha avó. Nasceu na Ponta do Caju, minha mãe não cansava de contar isso. E daí vieram para Paraty, minha mãe e minha avó vieram para Paraty empregadas de uma família lá do Rio de Janeiro. Foram para Paraty e depois vieram para Cunha.” (José Veloso Sobrinho, SP, 70 anos, 16/07/1987 p. 68)
Na sua opinião, por que Joaquim revendeu moça que havia comprado no Zaire?

3)       “Os únicos cativos aqui da minha gente foram só minha avó e meu avô. Por isso que eu não gosto nem que fale, porque me dói o coração, porque o que eu vi na televisão me dói o coração de ver aquele sofrimento. Eu quando vim no mundo, a minha mãe foi ventre-livre, não era escrava. Ela não falava disso não. Eu fui ver sobre o cativeiro direito foi na televisão. Me dá aquele nervo. Me dá aquele nervo de saber o sofrimento que eles passaram, me dá. Me dói ver que às vezes minha avó e meu avô passaram por aquilo tudo. É isso aí que me dói. Eu não gosto, me dá no nervo. Não quero saber, não quero saber, eu não vi minha mãe, mas me dói o coração. Não gosto de falar porque era minha avó! Mas quando Deus quer, o que se vai fazer. (...) Não era dizer que não era minha gente. A gente não falava sobre escravo. Não falava não. Eu vi bem a escravidão foi pela televisão. Mas que eles falavam, não falavam não. Minha mãe não contava nada. Ela dizia: ‘Mas eu não gosto, não quero, não gosto de falar.’” (Maria Francisca Bueno, SP, 106 anos, 9/5 e 16/5/1987 p. 105)
Na sua opinião, qual era a intenção dos ex-escravos ao evitarem falar sobre o tema da escravidão diante dos filhos e do público em geral?





            Alguns depoimentos elaborados pelos alunos na segunda metade da atividade chamaram a atenção, mas nem sempre pelos mesmos motivos. Em alguns casos, os alunos apresentaram depoimentos contraditórios em que transpareceu uma falta de clareza em relação à experiência da escravidão.
            Um aluno usou o pseudônimo de uma senhora de oitenta anos chamada Juliana, escrevendo assim [2]:

“A escravidão foi um período de sofrimento, pois não tinham respeito com a gente. Nós éramos maltratados e chicoteados, éramos abandonados, não tínhamos voz, não olhavam as nossas necessidades. Esse tempo acabou com a escravidão. Ficamos livres, mas não tínhamos um lugar para trabalhar e ganhar o nosso sustento. Mesmo livres, continuamos a trabalhar para os nossos senhores e assim fomos ganhando a nossa própria voz. Só que nesses tempos modernos, ainda sofremos racismo e o mundo não mudou muito.”

Nesse trecho, o aluno claramente acompanhou a percepção ilustrada pelo primeiro depoimento. Os ex-escravos revelaram um sentimento situado entre a felicidade e a apreensão ao receberem a notícia da abolição. Muitos não sabiam o que fazer fora do ambiente laboral na fazenda. O aluno parece não ter percebido qualquer incongruência entre a permanência no local de experiência da escravidão após a abolição e a conquista da “nossa própria voz”. É como se a relação pessoal com os antigos senhores se modificasse automaticamente porque agora os ex-escravos eram obreiros assalariados.
Outros depoimentos seguiram a linha do terceiro texto, em que se revela a insistência em ocultar detalhes sobre a experiência da escravidão para que antigos sofrimentos não se aflorassem à memória dos descendentes.

“Não gosto de falar das cenas horríveis, muito sangue escorrendo. Os escravos eram tratados como mercadoria. (...) Na senzala, a escravas eram abusadas e, às vezes, tinha filho, mas eram obrigadas a se separar dele. Tinha o capitão do mato que capturava os escravos que fugiam. Como castigo, eram amarrados ao tronco e chicoteados. Várias vezes vi que alguns morriam. Não agüentava mais. A dor é enorme.”


A imagem evocada pela aluna Nayara (nome fictício) como ponto forte do seu depoimento é o do tronco em que os escravos “fujões” eram castigados para exemplo geral. Demonstra muito interesse a noção lançada pela aluna de que uma escrava não poderia permanecer com os filhos que tinham no ambiente da fazenda. Talvez a falta de criação familiar estrita e o convívio compartilhado com os filhos de outros cativos sejam os motivos apontados pela aluna para justificar a construção desse tipo de memória.
Em relação ao impacto moral da escravidão e à sua repulsa, alguns alunos conseguiram desenvolver uma narrativa marcada pela presença de imagens bem construídas. A aluna Maria elaborou um depoimento curiosamente interessante nesse sentido.

“Meu nome é Maria e tenho cinco filhos. Passei pela escravidão, a pior parte da minha vida. Eu era uma escrava um pouco diferente das outras, pois não aceitava a realidade em que vivia, por mais que ela insistisse em permanecer. Eu já havia tentado sair de lá, mas o meu plano não deu certo. Eles me pegaram e, hoje, tenho uma cicatriz no rosto. Recebi um tratamento que foi o pior de todos durante a minha vida toda dentro daquela fazenda. Eu vi o pai dos meus filhos morrer [sic] na minha frente ao ser [sic] comido por cães, só por ter [sic] quebrado a perna e não servir [sic] mais para realizar a vontade dos senhores. E isso foi uma coisa que eu não aceitava e sempre tive vontade de vingança. Nunca obedecia o que eles mandavam e daí sempre apanhava demais, ficando trancada em um lugar sozinha e sem comida por vários dias. Às vezes, por vários meses. Como eu disse, a minha realidade não era como a das outras que só obedeciam. Enfim, 1888, 13 de maio. O que eu sempre quis aconteceu, ao contrário dos outros que estavam chorando e dizendo que não conseguiriam viver. Depois disso, consegui estudar, aprendi a ler e escrever, arrumei um trabalho e consegui manter os meus filhos vivos, sem morrer de fome ou passar maus-tratos.”

Influenciada pelo primeiro depoimento da atividade, a aluna Maria tentou transmitir em seu testemunho a ideia de singularidade comportamental em relação à cultura geral observada dentro da fazenda, marcada pelo consentimento maciço quanto ao instituto da escravidão. Chama a atenção o fato de que um homem em idade adulta foi sacrificado por ter quebrado a perna, enquanto a depoente – refratária a qualquer trabalho proposto pelo senhorio – conseguiu sobreviver mesmo diante dos custos para se manter um cativo aprisionado por dias ou meses. A forma como a aluna construiu a sua narrativa ajuda a aguçar a imaginação no sentido de colocar algumas perguntas. Percebe-se claramente que muita coisa foi ocultada no depoimento. Por que ela sobreviveu? O que ela tinha – ou fazia – para permanecer viva? Apesar do espírito rebelde, será que a sobrevivência da depoente dependeria de alguma espécie de acordo com o senhorio?
Apenas uma atividade tentou resgatar algum nível de humanidade por parte dos proprietários de escravos. Inspirada pela referência do texto dois da atividade, a aluna Sandra recheou o seu relato com uma série de detalhes que evocaram a relação entre o senhor e o escravo.

‘Meu nome é Maria e tenho sessenta e cinco anos. Meus avós escravos tiveram uma filha, minha mãe. Quando ela completou dez anos e idade, foi tirada dos pais e vendida para outra família. Ela cresceu trabalhando e ficou sem ver os pais por muito tempo. Vinte e sete anos depois, esse senhor que a comprou a levou para ver os pais. Só que meu avô já havia morrido e a minha avó estava muito doente. Quando a minha avó morreu, o dono da minha mãe providenciou o enterro e cuidou de todos os detalhes.”

Não fica claro porque um senhor de escravos conduziu uma mulher de trinta e sete anos para rever os pais em outra propriedade. A aluna não situa qualquer referência geográfica. Não sabemos nada sobre a distância entre as duas propriedades ou se eram na mesma cidade. Também é curioso observar que um enterro foi custeado por um proprietário sem a menor relação com os cativos da fazenda habitada pelos avós da depoente. Todo o eixo do depoimento gira em torno da mãe de Maria, a qual se colocou como verdadeiro despertador de humanidade do senhor de escravos, bem aflorada no depoimento. A razão disso não se sabe bem o porquê.



 [1] RIOS, Ana Lugão & MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 301 p.
 [2] A partir de agora, os depoimentos dos alunos serão aqui transcritos com correções gramaticais. O intuito será o de transmitir a mensagem proposta pelo aluno, mas com a máxima clareza possível. Como a dimensão do desenvolvimento da escrita não está sendo abordado no escopo dessa dissertação, optei pela transcrição adaptada na “forma culta da língua”, ainda que saibamos o quanto essa definição pode ser problemática. De qualquer modo, vários depoimentos soam aqui como se fossem mesmo orais.

Comentários