A rebelião das massas: um ensaio clássico que ajuda a entender o Brasil atual


Escrito em 1925, antes da ascensão definitiva dos Fascismos sobre a Europa, Ortega y Gasset traça um inquietante perfil psicossocial do cidadão médio do seu tempo. Conceitua-o como "homem-massa". O que raios vem a ser isto? O "homem-massa" nada mais é do que o indivíduo desgarrado de qualquer consciência histórica, pois para ele o passado não é um parâmetro seguro para a inspiração de valores e regras de conduta que possam balizar a própria visão de mundo. Para ele, a categoria de "Tradição" mostra-se tão rarefeita quanto imagina-se senhor natural do seu tempo e artífice único de suas escolhas. O "homem-massa", coitado, acha que inventou a pólvora.

Se a História não significa absolutamente nada para o homem deste tempo, de onde então ele retira os valores que lhe pautam as ações? Resposta: de lugar nenhum ou, melhor dizendo, dos grupos políticos que gritarem o suficiente a ponto de galvanizarem uma opinião/comportamento padronizados. Daí como Ortega y Gasset brilhantemente observa que a sofisticação tecnológica dos tempos hodiernos se fez contrastar pelo primitivismo da alma humana. Afinal, para o "homem-massa" a realidade em si passa a ser tomada como "natural", suficiente por si mesma, auto-reprodutiva. O funcionamento das instituições políticas, por exemplo, começa a ser superficialmente criticado por sujeitos que, distantes das responsabilidades reais, imaginam cândidos projetos para a condução do Humano com a mesma facilidade com que tomam o café pela manhã.

É nesse tocante em que o livro atinge sua culminância. Vivenciamos uma era de completa irresponsabilidade - e, portanto, de inconsequência - no debate público. E essa "irresponsabilidade" pode conduzir a vida humana para o precipício dos enganos, nascedouro da dor coletiva. Afinal, uma sociedade composta pelos "homens-massa" não tem mais os filtros da aristocracia, que por séculos inauguraram padrões de sociabilidade progressivamente incorporados pelos demais setores da sociedade. Agora não, visto que democracia política e progresso material abriram um perigoso precedente para que o Homem, sem saber de onde vem, desconheça o rumo por que seguem seus passos.

O brilhante ensaio de Ortega y Gasset torna-se um farol capaz de iluminar o Brasil Contemporâneo, por exemplo. Parcelas vultosas da classe média - desgostosas diante das infindáveis denúncias de corrupção advindas dos governos anteriores de extração popular - depositaram a confiança do voto em um projeto de desmantelamento simbólico das instituições republicanas. Esse projeto carnavaliza a atuação presidencial transformando-a em uma espécie de palanque eleitoral eterno. A hora do trabalho nunca chega, sendo substituída pelo conclave ideológico contra inimigos imaginários de uma oposição alijada dos mecanismos de financiamento público. As instituições têm sido permanentemente cravejadas pela falta de decoro e respeito presidenciais aos ritos da república, sob o aplauso de eleitores raivosos que ajudam a destruir lentamente o passado institucional do país. O "homem-massa" brasileiro não tem clareza o suficiente para entender o que virá pela frente.

Se permanecer o estado atual de anomia social, talvez o futuro choque um ovo de serpente cuja peçonha de animal crescido colocará em risco a todos nós.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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