A introspecção como pão diário: a terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa

Melancolia, Edvard Munch, 1891
“Sabe o que eu mais quero agora, meu amor? Morar no interior do meu interior. Pra entender porque se agridem. Se empurram pro abismo, se debatem, se combatem sem saber.” (Vander Lee, compositor mineiro) 

Assim que terminei a leitura do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, me veio à mente a seguinte indagação: em que medida é necessário ao homem um tempo só para si mesmo, afastado de atribulações diárias, compromissos profissionais e demandas familiares? A estória de um camponês que abandona a família e passa a viver meditando dentro de uma canoa, solto pelo rio afora, me fez recordar de uma célebre passagem bíblica. Em determinado momento das peregrinações de Cristo pela Judeia, o Salvador chega para repousar na residência de sua mãe, Maria, a qual fica toda entusiasmada com a visita do filho de Deus, tratando de parar todos os compromissos com o fito exclusivo de ouvi-lo. A tia Marta não deu a devida atenção ao sobrinho, preocupando-se muito mais com as atividades diárias de limpeza da casa. Jesus então soltou uma frase que tem larga aplicação para o que prendemos transmitir:


“Marta estava ocupada com muitos afazeres. Aproximou-se e falou: ‘Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha com todo o serviço? Manda que ela venha ajudar-me!’ O Senhor, porém, respondeu: ‘Marta, Marta! Você se preocupa e anda agitada com muitas coisas; porém, uma só coisa é necessária, Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada.’1 


Publicado em 1962 pelo escritor mineiro, João Guimarães Rosa, sob o título de “Primeiras estórias”, o conto “A terceira margem do rio” é um destas experiências literárias que deixam uma impressão na memória capaz de acionar o leitor por vários dias seguidos, mesmo em momentos mais inoportunos. Isso se observa tanto em função da impactante iniciativa do protagonista em abandonar tudo para ficar dentro de uma canoa quanto pelo envolvimento emocional do narrador com o episódio, no caso, o próprio filho do estranho eremita.

O ambiente do conto remete ao bucólico mundo rural, marcado pela pobreza de necessitados que – não obstante às dificuldades impostas pelo derredor – mantêm aquela dignidade das pessoas conformadas quanto aos infortúnios do próprio destino. A vida parece ser meticulosamente regida pelos desígnios da Providência, em que cada personagem cumpre um roteiro de existência pré-definido com baixíssimas chances de movimentação.

Logo no primeiro parágrafo do conto, o narrador transmite a deixa da personalidade introspectiva do pai. Observa que a mãe assumia o papel de chefe de família, enquanto o marido permanecia “só quieto”, como que entretido no próprio mundo. “Sem alegria nem cuidado”, um dia o pai mandou fazer uma canoa e precipitou-se no rio, sem dizer a alguém coisa alguma. Até que o curioso narrador tentou embarcar na aventura paterna, pedindo para embarcar junto na canoa, mas sem sucesso. Uma vez no rio, o pai de família simplesmente não retornou. Deixou-se embalar pelo som das águas a bordo do junco. A mãe, envergonhada diante dos vizinhos, respondia aos interessados que o marido simplesmente havia contraído alguma “doideira” qualquer.

Dias, meses e anos sem passaram sem que ninguém conseguisse fazer o velho deixar a canoa. Muitos tentaram demovê-lo do ato impensado, como o cunhado, o padre e mesmo soldados que foram convocados àquele remoto lugar. A filha casou-se e teve filho, mas o sombrio homem recusava-se a deixar o universo dos seus próprios pensamentos. Comia o mínimo daquilo que deixavam na margem do rio, em cujo trabalho nunca deixou de perseverar o filho-narrador do conto. Todos da família partiram dali para nunca mais voltar. O filho narrador, no entanto, compadecido do aparente sofrimento e desconforto do pai, deixou que a vida entrasse em estado de coma. Não se casou nem teve filhos. Velou à distância pelo pai por anos a fio. Ao fim e ao cabo, lançou a proposta de substituir o velho dentro da canoa, recusando-se, porém, em levar a termo um fardo tão pesado.

As questões que se colocam ao final do conto são as seguintes: quantos rios fluíram pela alma do homem enquanto ele estava largado dentro da correnteza? Que necessidade tão profunda de introspecção fez com que um pai de família largasse tudo para refletir sozinho pelo resto da vida? A terceira margem do rio nos leva ao entendimento de que, a despeito das correrias da contemporaneidade, precisamos de momentos de silêncio nos quais retomamos o fio da nossa própria consciência. O engraçado no conto de Guimarães é que o cenário escolhido não se remete à agitação urbana, mas sim ao Brasil rural, afastado e subdesenvolvido. O ritmo lento da vida no campo não se colocou como obstáculo ao isolamento total, talvez porque a alma do velho pai fervilhasse de reflexões que precisavam ser digeridas para amadurecimento. Amadurecer para quê? Talvez para sobreviver à própria vida com sanidade mental.

Sociologicamente, o conto de Guimarães Rosa ganha um complemento importante no livro “Sociedade do Cansaço”, do filósofo germano-coreano Byong Chul-Han. 2 Chul-Han observa que a sociedade do século XIX era marcada pela idéia de controle do comportamento, o que se via na construção de prédios como o hospital, o sanatório, a penitenciária e os asilos. A ação individual e espontânea acabava sendo podada por uma espécie de comportamento médio padronizado que se alçava como o modelo correto de conduta. Byong Chul-Han chama a isso de “sociedade disciplinar”, pois o símbolo máximo deste tipo de vida era a “ negatividade da proibição”. As pessoas eram coagidas à aclimatação social. Já nos tempos atuais, observa-se uma substituição da sociedade do controle pela sociedade da produtividade. Não nos encontraríamos mais sob a égide do olhar policialesco das instituições, mas sim estaríamos livres para o desenvolvimento positivo das nossas potencialidades.
 
Viveríamos em uma “sociedade de desempenho”, cujos arquétipos seriam as academias, os escritórios, os shoppings centers e os laboratórios de genética. O século XXI não seria mais delimitado pelas amarras da proibição, dando vazão às alegrias rápidas da motivação e do entusiasmo. Se há um século e meio atrás os disfuncionais sociais eram os loucos, a partir de agora a sociedade estaria pronta para excretar depressivos e fracassados. Uma sociedade voltada para o desempenho não se deixa marcar por estranhamentos. Tudo acaba sendo considerado pelo prisma da normalidade. Na produção constante de si mesmo, como se observa bem nas rotinas sempre cheias de uma academia de musculação, não haveria espaço para obediências às hierarquias do medo. Cada um estaria com a consciência voltada para o aperfeiçoamento máximo de suas características físicas. O imperativo da produção seria uma linha constante rumo ao infinito do que se almeja, mas que nem sempre se alcança.

No entanto, o individualismo que se busca produtivo e competitivo também cobra os seus tributos psíquicos. A pressão constante pelo superar-se devastaria a sociedade como uma pandemia incurável. As pessoas estariam submetidas a um cansaço extremo, expondo-se à Síndrome de Burnout. O indivíduo competitivo vive profissionalmente ocupado sem chegar a nenhum lugar determinado, responsabilizando-se pelos próprios sucessos e fracassos, como se tudo dependesse exclusivamente da própria capacidade de iniciativa.

A aparente liberdade de uma vida sem limites torna-se uma nova modalidade de escravidão. Não há mais asilos ou hospitais que se ergam como modelos de comportamento esperado. A pós-modernidade só admitiria o homem que arquiteta as bases do próprio destino através da autoexploração. A sociedade da produtividade é marcada por homens que são algozes de si ao mesmo tempo em que adoecem por causa disso.

Nesse sentido, o conto “A terceira margem do rio” parece fazer todo sentido. O camponês humilde que se deixa lançar em um barco no curso infinito do rio só deseja acertar os ponteiros do relógio da própria alma. Recusa-se a correr atrás do vento para agradar aos mecanismos competitivos de uma sociedade que se guia pelas aparências. 

Mas, afinal, sobre o quê refletia tanto o homem na canoa? Não sei. Ninguém sabe. Talvez nem o próprio autor do conto, João Guimarães Rosa, pudesse dizer qualquer coisa. Os recônditos da consciência de cada um se assemelham a tesouros que se escondem no fundo de navios afundados.

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1 Lucas 10: 38-42 in Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Paulus: São Paulo: 1990. p. 1328.

2 Han, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

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