A memória é o sinônimo de vida experimentada,
impregnada de lembranças cotidianas, carregadas por grupos vivos e em
permanente evolução e transmutação. Aberta ao esquecimento e à recordação, de
modo que pode ser utilizada para todos os usos e manipulações. Há de se
ressaltar que a tentativa de emprestar à História as características típicas da
“memória” conduz-nos ao forçado erro de falsificação do passado. Os testemunhos
não podem ser entendidos como retrato fidedigno do passado histórico. Quando
muito, ajudam-nos a ilustrar as experiências de vida dos antepassados,
iluminando o contexto social em que as lembranças foram geradas, mas sem
traduzi-las por completo.
Isso acontece porque a memória traz
consigo o dom da “parcialidade”. As leituras pretéritas surgem na afetividade
das testemunhas em função da maneira como presenciaram o passado. Por exemplo,
as tentativas de produzir uma “Educação” após o advento dos campos de
concentração da Alemanha durante a Segunda Guerra podem conflitar com a
realidade vivida de testemunhas que se beneficiaram do regime de pleno emprego
do Terceiro Reich. Às vezes, milhares de famílias – mesmo diante do inefável
sofrimento humano de uma guerra perdida – poderiam carregar uma lembrança
positiva em relação à ditadura hitleriana.
Como nos recorda Pierre Nora, a
História situa-se como “representação do passado” de um mundo que não existe mais. O discurso historiográfico, mais disciplinado na
metodologia científica, apresenta-se como uma espécie de filtro para as memórias
dispersas dos cidadãos, seja para a exaltação de um projeto de “Estado Nação”
ou para a ênfase do multiculturalismo que clama por ampliação de cidadania.
Todos nós “representamos” o passado coletivo de alguma forma, ainda que o
conteúdo das imagens que internalizamos seja fragmentado ou não faça o menor
sentido. O mundo contemporâneo pós-Muro de Berlim desvelou a inconsistência das
proposições de uma “memória nacional” unívoca em meio à emergência da
pluralidade de novos discursos, vozes, sonhos e reclamos. Uma vez desaparecido o peso do comunismo na parte oriental de Berlim, as pessoas começaram a manifestar livremente aquilo que pensavam sobre o passado. Hartog demonstrou
muita propriedade ao revisitar os “lugares da memória” de Pierre Nora através
das disputas minoritárias pelo espaço: ruas, museus, arquivos e bancos de dados
tombados como “patrimônio” porque simbolicamente ligados às minorias políticas.
Isso significa dizer que a
consciência coletiva se propõe a periódicas mutações, mesmo porque o espaço de
disputa pela memória está colocado entre os grupos sociais. As pressões
políticas estão na ordem do dia. Quando chegar o momento correto da acomodação
de uma “nova” memória, o cidadão médio carregará lembranças atualizadas de
personagens, eventos, datas e processos. Essa “nova” síntese trará em seu bojo
uma leitura do passado que viabilizará uma antevisão da sociabilidade futura. O
nosso “porvir” enquanto “Nação” que pretendemos construir depende da ordem e
importância dessas representações. As
ações políticas se desdobram no repertório de teorias existentes.
Frente a isso, toda prudência faz-se
necessária, sob pena de falsificarmos as nossas experiências vividas em nome de
bandeiras que nos são estranhas.
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