Ensino de História 1 - Estimulando a imaginação dos alunos com atividade sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-8)



Apresentamos uma atividade, para o 9º ano do Ensino Fundamental, tendo como pano de fundo o contexto histórico da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O aluno deveria escrever uma carta direcionada à família como se fosse um soldado francês, alemão ou britânico entrincheirado em um front da “Grande Guerra”. O objetivo era fazer com que o aluno imaginasse as cenas do sofrimento de combate que estava atravessando e descrevesse à família qual o sentimento experimentado durante o conflito. Algumas alunas se situaram como se fossem enfermeiras em atuação em algum hospital militar próximo à frente de combate. Tratarei laconicamente esta proposta pela noção provisória de “escrita engajada”.

                Nesse exercício, o objetivo era o de tornar o aluno uma espécie de agente ativo do cenário de guerra. Os alunos ficaram à vontade para que pudessem descrever e explicar o conflito mundial a partir de uma perspectiva absolutamente própria, seja envolvendo o medo da perda, a possibilidade de não retornarem para os lares ou mesmo o despropósito dos combates continuados sem que a refrega chegasse a um ponto final. Todo o corpo discente também ficou à vontade para criticar a ideologia de guerra das partes envolvidas ou, se fosse o caso, sentir-se como parte integrante desses mesmos discursos. Ou seja, a liberdade de descrição das experiências “vividas” foi ampla e sem restrições.

                Para tanto, o professor ministrou aulas e apresentou materiais originais que expusessem a dimensão de tragédia humana da guerra mundial. Fotos de soldados entrincheirados, hospitais de campanha, cemitérios, cadáveres, mutilações por gás ou armas de fogo. A intenção era a de povoar o imaginário dos alunos com elementos concretos para que futuramente pudessem construir as próprias narrativas. Importante ressaltar que cabe ao professor oferecer aos alunos os recursos a partir dos quais eles poderão imaginar as suas próprias estórias, sentindo-se parte integrante de um contexto histórico absolutamente traumático.

                O resultado final do exercício foi bastante positivo. Vejamos alguns deles. Para alguns, o despropósito real do conflito tornou-se patente imediatamente. O aluno A.C. escreveu assim:
“Família,
O horror aqui é muito grande. Ver essas pessoas mortas me traz uma tristeza muito grande. Ver o sangue de inocentes derramado por causa de bobagens, por causa de uma guerra. Será que vale tudo isso? Os soldados, às vezes, pais de família, trabalhadores, são obrigados a matar ou serem mortos [sic]. Eu ainda não fui morto porque soube me esconder. Se eu não tivesse me escondido, provavelmente vocês não estariam lendo isso agora. Para conseguirmos uma passagem ‘segura’, ficamos nas trincheiras [sic], as quais permitem nossa locomoção sem muito risco. Nós dormimos lá, comemos lá.”
Percebemos claramente nesta passagem que o aluno A.C. soube mobilizar conhecimentos sobre a função das trincheiras (esconder-se de bombardeios e locomover-se, por exemplo) obtidos diretamente em sala de aula através das exposições orais e gráficas ministradas pelo professor. Outro ponto de interesse do relato repousa sobre o dilema humano dos indivíduos “obrigados a matar” em nome de um nacionalismo fugidio ao “pai de família” em suas preocupações cotidianas. Para o aluno em questão, atacar as fileiras inimigas em nome de uma ideologia de exaltação nacional figurava como verdadeira “bobagem”. O despropósito de uma guerra nada justa se mostra patente na avaliação que o aluno A.C. apresentou ao professor. Além de imaginar-se como parte integrante do conflito, o aluno soube muito bem criticar a inutilidade da guerra para os propósitos comezinhos do homem ordinário. 

Em alguns casos, as imagens criadas pelos alunos para contar a situação vivida nas trincheiras da “Grande Guerra” beiram a descrição cinematográfica. A aluna P.A. escreveu da seguinte forma:

                            “Alemanha, 13 de abril de 1916
                            Querida mãe,
Hoje foi mais um dia como outro qualquer. Está difícil para nos mantermos em pé. São apenas 2h30m para dormir em trincheiras sujas, cheias de ratos, soldados mortos, fezes. Estamos praticamente comendo com os ratos, sem falar no cheiro, que é insuportável. No meio da noite ficamos acordados, inimigos nos atacando; era chuva de bala pra todo lado, as metralhadoras cuspiam projéteis. (...) Eu estava escondido em um buraco com meu amigo. Quando acabou o barulho das armas, o silêncio reinou. Saímos e tudo o que podíamos ver eram soldados mortos, misturados no meio da areia.” 
Neste caso, a aluna preferiu-se colocar como parte integrante dos exércitos derrotados, no caso, os alemães. Uma pujante narrativa, surpreendente até, evoca a um só tempo o ambiente fétido das trincheiras, a privação do sono, os efeitos climáticos que surgem como tormentas na situação excepcional da guerra e também a cumplicidade fraterna entre irmãos de armas. Tudo aparece muito bem equilibrado em uma imagem de guerra que se assemelha a um thriller hollywoodiano. Possivelmente, a aluna fez aflorar no texto um prévio repertório de filmes de guerra já assistidos.

Um aluno em particular, conseguiu entender perfeitamente a natureza da proposta de atividade sugerida pelo professor. E isso se justifica não somente pela quantidade de detalhes observados na carta, como também pela apresentação física do trabalho no tempo estipulado. O aluno W. D. conseguiu “envelhecer” uma folha de caderno através de um curioso método: o aluno passou pó de café em toda a folha, simulando a terra de uma missiva escrita dentro de uma trincheira e, atenção para o capricho, recolhida às pressas para o envio. Com lápis de cor vermelho, o aluno desenhou algumas gotas para simular o “sangue” do próprio soldado escritor. De fato, um trabalho que desvelou notável engajamento por parte do aluno, além de completa imersão na proposta de trabalho lançada à turma pelo professor.

O texto da carta ficou assim:
“Quando receber[d]es esta carta, posso já não estar vivo, mas peço-lhe que continue[m] acreditando que essa maldita guerra acabará e que eu voltarei são e salvo para casa. Já não agüento mais, várias pessoas estão morrendo. Perdemos vários soldados, várias amigos para metralhadoras [sic], tiros daquele maldito tanque e o pior de todos, o gás da morte. Aquilo foi desumano, pessoas com a pele derretendo. Por pouco não me pega também. Essa semana acabamos de cavar mais uma trincheira, mas durante o processo perdemos quinze soldados mortos a tiros [sic]. Mal acabamos de cavar uma trincheira, já morreram vários soldados nela. Recebemos vários suprimentos, caixas de munição, armas novas, granadas, combustível para os tanques, água e a nossa preciosa comida. Pena que não podemos comer muito de uma vez, pois se acabar agora ficamos com fome. Até chegar mais suprimento demora um pouco. Amor, cada dia eu escrevo um pouco à noite, pois as coisas são muito repetitivas aqui. Então eu só queria que você soubesse que eu te amo muito e vou fazer o possível para voltar vivo.”
Alguns traços de interesse se desvelam na carta do aluno W. D. Em primeiro lugar, observamos o imediato contraste entre a possibilidade de morte iminente e a expectação de retornar em segurança ao lar após a peleja. Não tenho dúvidas de que esse perfil psicológico se encontrava presente entre os soldados reais que participaram dos horrores da “Grande Guerra”. Em segundo lugar, a menção ao “gás da morte” demonstra que o aluno perfaz uma espécie de hierarquização entre os temores da guerra, no qual o gás surge como maior ameaça à vida do que os “tiros” e os “tanques”, entendidos como menos danosos do que a pestilente fumaça. Fica claro o quanto as fotografias de época mostradas pelo professor em sala de aula ajudaram os alunos na confecção de um imaginário marcado pelo impacto frente à indústria de morte da guerra. 
Observemos abaixo a fotografia apresentada pelo professor no datashow:


Trata-se de uma imagem genérica que ilustra os efeitos visíveis do gás mostarda sobre a pele, o qual foi amplamente usado em campo de batalha pela Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. Não necessariamente refere-se à realidade entre 1914 a 1918. É importante ressaltar que o objetivo deste trabalho era o desenvolvimento da imaginação dos alunos em uma aula de história, de modo que o professor permitiu-se ao uso de uma fotografia historicamente deslocada do contexto da Primeira Guerra, mas que ao mesmo tempo cumpria uma função ilustrativa necessária aos educandos. A imaginação dos discentes precisava da alimentação correta. A fotografia não apresenta uma data confiável na Internet, mas possivelmente remete a algum ano dos 1940. No site utilizado pelo professor para a extração da imagem, uma lacônica legenda aponta: “Um soldado canadense após uma leve exposição ao gás mostarda.”[1]

Todos os alunos que se referiram ao gás mostarda na atividade desenvolveram um enorme senso de empatia pelo sofrimento alheio. Em terceiro lugar, o trabalho feito pelo aluno W. D. também expõe aspectos importantes na rotina da guerra: a escassez de alimentos e suprimentos, além do enfado diário experimentado na árdua tarefa de alargamento das trincheiras – cavadas pacientemente pelos próprios combatentes.

Por último, mas não menos importante: o aluno W. D. desenhou a lápis de cor vermelha algumas manchas na carta, fazendo uma clara alusão ao sangue do soldado que decidiu apresentar. As possibilidades de uso da imaginação podem variar bastante neste ponto. Será que ele escreveu após uma batalha, ainda ferido? Talvez o soldado tenha escrito à esposa após ter ajudado a retirar cadáveres do campo de batalha. Quem o saberá? Entretanto, tais indagações ficarão sem resposta conclusiva, preferindo habitar o campo pantanoso das dúvidas. Fato é que a presente atividade conduzida pelo aluno explorou ao máximo os recursos oferecidos em sala de aula, oferecendo ao discente uma experiência escolar marcante quanto ao estudo do tema.


[1] Imagem retirada do Site Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%A1s_mostarda. Acesso em: 22 de abril de 2020.

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